Íris Machado, sob orientação da Profª. Drª. Zulmira Nóbrega
Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar a comida. […] Mas o costureiro dos meus vestidos é o caranguejo. E é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas. O peixe […] só tem barbatanas e as barbatanas só servem para nadar. Mas é o meu melhor amigo. — Sophia de Mello Breyner Andresen, A menina do mar
Em Cabedelo, quem leva a brisa do mar à cidade não é só o sereno. Bem pertinho do porto, a um passo da praça Getúlio Vargas e da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, a correnteza abre as portas do espaço criativo Casarão do Padre, onde está à mostra um pouco do trabalho de Cleide Freitas. Artesã há mais de dez anos, Cleide é dona de um ateliê virtual na cidade, além de dar aulas e participar de feiras de artesanato por toda Paraíba.
Foto: Íris Machado
Antes de embarcar na carreira de artesã, ela trabalhava como gerente administrativa de uma franquia de restaurantes. “Quando tive que pedir as contas, fiquei em casa sem saber o que fazer para cuidar do meu filho. Daí comecei no artesanato”, conta. “Se bem que minha mãe e minha avó já faziam [artesanato], coisa que aprendi desde pequenininha, na prática mesmo”. Foi por meio da participação no projeto “Ondinas de Cabedelo”, iniciativa da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da cidade, que Cleide encontrou uma porta para atuar integralmente como artesã.
Assim, o que surgiu pela necessidade logo se converteu em paixão. Hoje, Cleide vive do artesanato — e diz que o aspecto mais importante da prática reside na raiz da palavra: a arte.

Foto: Íris Machado
Foto: Íris Machado
Cleide, ao lado de outras artesãs, participa da Rede Cabedelo Criativa, idealizada pela Secretaria de Cultura do município para promover os artistas e as produções culturais da cidade.
Uma delas é Joselma Alves, integrante do projeto Garimpeiras do Mar, composto por artesãos dedicados ao upcyling — “reaproveitamento”, em bom português — de conchas, escamas de peixe, mariscos, redes de pesca e outras matérias-primas provenientes das praias de Cabedelo. Para além da iniciativa, parte das peças de Joselma se encontra na loja 06 do Centro de Comercialização de Produtos Artesanais da praia do Jacaré, lar de um dos pores do sol mais bonitos do Brasil e da Associação Farol de Cabedelo, a que ela pertence.
Foto: Íris Machado
A paixão de Joselma pela profissão surgiu há mais de vinte anos, quando engravidou pela primeira vez e bordou todo o enxoval do bebê. Mais do que isso, foi o artesanato a saída dela para a depressão que tentava consumi-la após o falecimento do filho.
“Fiquei quase dois anos afastada [do artesanato]. Quando voltei, trabalhei com jornal, o artesanato de cestas e bolsas em jornal. Aí conheci as escamas de peixe e as conchas e me apaixonei”, revela. “E estou aqui até hoje”.
Atualmente, além das conchas e escamas, a produção de Joselma se utiliza de couro de peixe, crochê e macramê.
Entre as peças mais populares da artesã estão as bolsas, tanto de crochê quanto de escamas de peixe, com aplicações de camurupim. Mas o verdadeiro xodó das clientes de Joselma é o colar Cores, feito por três camadas de escamas de peixe tingidas de tons distintos e vibrantes de amarelo, azul, rosa e verde, retrato do verão de Cabedelo e sucesso absoluto nas feiras em que a artesã participa.

Fotos: Íris Machado

“Imagina se a vida fosse só preto e branco”, diz Joselma, na legenda de uma publicação em que compartilha o processo de preparo das escamas para o trabalho. Em uma das fotos, ela mostra o tingimento do material com cascas de cebola roxa. “Amo as cores”.
O NASCIMENTO DE TERESA
— Eu digo: “Vocês vão fazer tudo de rosa de escama de peixe. Eu não quero rosa natural não, quero tudo escama. Eu lá no caixão com uma boca vermelha, maquiada e vocês me enchendo de rosa de escama, viu?” Vai ser a notícia: “defunta é ornamentada com rosa de escama de peixe”.
Foto: Íris Machado
Teresa Júlio nasceu em Santa Rita, mas é de Cabedelo. Trabalhou como bancária em Campina Grande e deseja ser enterrada ao lado dos pais, em Alagoa Grande. Mas é de Cabedelo.
Foi aqui que a família de Teresa encontrou morada, a mãe dona de casa e o pai tenente de polícia, primeiro delegado da cidade. Foi aqui que ela conheceu e, recém-solteira após um casamento de 24 anos e 6 meses, reencontrou o primeiro amor. E também foi aqui o berço do renascimento de Teresa: não das cinzas, como a fênix desenhada na perna esquerda dela. Das espumas do mar.
— Esse aqui é meu camurupim. Foi feito mês passado. — Teresa sorri para o peixe capturado no antebraço esquerdo, acima de uma rosa. — Deixa eu te falar, quando fez 50 anos que me separei, eu fiz uma fênix bem grande daqui para cá [na coxa]. São a minha libertação e o meu renascimento.
Foto: Íris Machado
Camurupim, pirapema ou tarpão é um peixe cosmopolita, habitante de águas estuarinas, fluviais e salgadas. Alongado e achatado, tem os olhos esbugalhados e a mandíbula saltada para facilitar a conquista de presas na superfície d’água. Valente, capaz de atingir dois metros e meio de comprimento e 150 kg de massa, apresenta o corpo coberto por reluzentes escamas prateadas, que lhe renderam o apelido de “rei prateado”.
Barcos pesqueiros não se interessam pela pesca do camurupim. É um peixe considerado “de segunda”, consumido pela população de classe mais baixa. De cheiro forte, carne escura e sabor característico, não dá retorno suficiente para justificar a pesca industrial.
É no balanço das jangadas dos pescadores artesanais de Cabedelo, assim, que o artesanato em escamas de peixe sobrevive. Se os artesãos constituem a mente, a pesca artesanal representa o coração pulsante da arte local. As escamas vêm de dois tipos de camurupim: o camurupim normal e o camurupim roxo.
Nas mãos de Teresa, a prata do rei transforma-se em brincos, colares e presilhas. Tornam à vida copos-de-leite, crisântemos, pétalas de rosa. As unhas de artesã, desgastadas até a carne, modelam escamas em seres vivos.
Fotos: Íris Machado
— Toda mãe quer ver seu filho bem, mas às vezes tem mãe que não tem condição. E a escama é aquela mãe que tem a condição de abraçar todos os seus filhos. Eu tenho respeito com a escama, sabe? Para mim, ela é minha psicóloga. Ela é minha psiquiatra. Ela não me permite entrar em depressão. E para mim ela é tudo. É o meu tudo.
Ao entrar na casa de Teresa, você é recebido por um mar de escamas de camurupim — trinta e cinco quilos delas. Ainda úmido, lavado com sabão em pó para remover os resíduos, o oceano particular da artesã descansa sob um pano no terraço, de frente para o sol da tarde.
Fotos: Íris Machado
Teresa não sabe nadar. Tem medo do mar. Viu a irmã se afogar na praia, quando mais nova, até ser puxada de volta à superfície pelos cabelos. Ainda assim, à medida que os raios solares mudam de posição, ela guia o movimento das ondas de escamas para acompanhá-los.
Esbranquiçada ou perolada, toda escama é única. Singular. Nenhuma possui o mesmo formato, a mesma correnteza de nervuras. Nem a mesma rota.
Foto: Íris Machado
Por isso, logo quando começou a navegar entre as escamas, Teresa cultivou a mania de guardar em um caderninho a receita das peças, o modo de fazer as montagens. Hoje, a artesã reserva um exemplar de cada para si, porque não pode depender apenas do conhecimento prático. A mãe tinha Alzheimer, explica, e Teresa já percebe o princípio de falhas na memória.
— Meu tempo de utilidade já tá indo — diz. Esse excesso de movimentos repetitivos com as mãos também exige muito das articulações, que ficam dormentes, perdem a sensibilidade das agulhas. — Eu posso orientar enquanto eu estiver aqui, mas nós precisamos formar mais multiplicadores. E pessoas que gostem de ser multiplicadores. O que mais tem, minha filha, é o egoísmo, sabe?
UM ORGULHO DANADO DA ESCAMA
Companheiro de vida, o artesanato começou a seguir Teresa ainda na infância. Aos oito anos, ela aprendeu a crochetar junto à irmã, com a intenção de ajudar a mãe nas encomendas das famílias usineiras de Alagoa Grande. As três, Teresa conta, tinham a mesma tensão de ponto, característica que permitia às filhas adiantar as partes mais simples do trabalho da mãe.
O crochê é, porém, somente um dos pontos no caminho do artesanato de Teresa. A arte já a levou para fora de Cabedelo, da Paraíba e até do Brasil. Uma das peças da artesã, a flor de alcachofra, foi presenteada ao Papa Francisco pela ministra da Cultura Margareth Menezes durante uma visita ao Vaticano, em 2024.
A flor de alcachofra é uma criação especial para Teresa. No desabrochar dela, a artesã conquistou o dinheiro que faltava para ir a Portugal, onde a filha Kassandra mora, e a apoiar diante da descoberta de uma doença degenerativa no olhar do neto. Com apenas 5% da visão, Joaquim realiza treinamentos com uma bengala e um cão-guia, ciente de que pode perdê-la por completo a qualquer momento.
— Essa daqui é uma abençoada, essa alcachofra. Isso Deus me mostrou como montar. Através dela, eu consegui muitas coisas boas na minha vida — diz Teresa, com os olhos marejados. — Acho que eu não vou criar outra peça que tenha a história afetiva que ela me traz. E que sempre tá me trazendo.
Fotos: Íris Machado
Em outubro de 2024, Teresa desembarcou na França para participar do salão de artesanato “Ob’Art”, na cidade de Saint-Ouen-sur-Seine. Ela representou o Brasil na feira ao lado do artesão pessoense Alexandre Nogueira, após uma seleção do Programa do Artesanato Paraibano (PAP) e da curadoria do Ateliers d’Art de France. Lá, ela comenta, não existem artesãos: todos são considerados artistas.
— Eu tinha esse sonho, de levar a escama da Paraíba para o mundo. E isso me foi permitido, né? Hoje [a Associação de Artesanato Farol de Cabedelo] tem um lugar onde comercializar e eu sempre sonhei que fosse em Jacaré. Nunca sonhei e nunca pensei em chegar a mestre do artesanato. É um sonho que eu não tinha sonhado, mas quando aconteceu, eu me senti plena — lembra. — E o único sonho que ainda peço a Deus que ele me permita é a associação ter uma sede própria, com um carrinho pra levar as colegas pras feiras. Eu peguei 35 kg de escama, 10 baldes grandes, porque eu tenho onde botar para secar, tenho onde lavar. E quem não tem? — E ela visualiza, talentosa em entrelaçar a imaginação à realidade: — Lá na sede vai ter uma pia, vai ter um freezer. Vai ter a máquina para fazer o curtimento do couro. Pode ser que eu não veja. Não sei qual é o tempo que Deus vai me dar, né? Mas eu acho que nós vamos despontar. Vamos ser referência no artesanato da escama.
Ela embarcou pela primeira vez no artesanato das escamas de peixe em 2007, ao se deparar com inscrições para um curso no bairro de Jacaré. As vagas disponíveis já estavam preenchidas, mas Teresa correu em busca de uma solução: foi atrás da secretaria responsável, falou com uma das alunas que participaram do evento para repassar o conteúdo a outras aprendizes e conseguiu organizar uma nova oportunidade de capacitação financiada pela prefeitura.
— Toda vida carreguei o “não”, sempre ando à procura do “sim”. O “não” eu já tenho. Eu quero o “sim”.
Na época, o quilo da escama era R$5. Hoje é R$50.
Foto: Íris Machado
Parte das ondinas de Cabedelo, Teresa se considera uma “facilitadora”, e não uma “professora”.
— A gente nunca tá pronta. Uma artesã que diz “eu já sei de tudo”… Eu tenho pena dela. Às vezes uma daquelas meninas que estão lá comigo me ensinam uma coisa que eu não sei, um modo que eu não sei, e isso só faz a gente crescer, né?
Nas aulas gratuitas que dá para mulheres da comunidade, a matéria-prima fica por conta da artesã. Ela só pede para trazer o material necessário à confecção. E aconselha:
— Tesoura de escama tem que ficar só pra escama, porque ela cega. Só corta escama, não corta outra coisa. Se você tiver uma tesoura, de onde for, de primeira, caríssima, não dá pra cortar escama com ela. Você vai deixar ela só pra escama.
Para vender, Teresa tinge peças a partir do chá da casca de cebola. Expõe colares em tons de azul, verde e vermelho, obtidos do pó de corantes de bolo. No entanto, nas palavras da artesã, nenhuma dessas cores substitui a beleza das escamas naturais.
— E é de Cabedelo. Sempre digo: “ó, escama de Cabedelo, viu? Ca-be-de-lo!” Porque tem de João Pessoa, tem de Pitimbu, mas essa é de Cabedelo — ela anuncia. — Deus sabe porque eu tinha que vir para Cabedelo, né? Que reencontrar meu primeiro amor… e conhecer as escamas de peixe.