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Seção Memorial: a morte como cultura em páginas paraibanas

Beatriz de Alcântara

O que é a morte senão a única coisa que todos os seres possuem em comum? Apesar disso, falar sobre este assunto ainda causa arrepio na espinha para boa parte da população, mesmo que tal temática seja corriqueira dentro de uma sociedade. Ou seja, a morte como pauta, seja jornalística ou de conversa, está sempre no limbo entre o tabu e o cotidiano.

Quando estampa as telas das TVs, a morte ganha um tipo banalizado de apresentação, geralmente relacionado à violência e pouco tratada em outras versões. Na contramão dessa estética, existem os obituários que ocupam espaço nos jornais impressos há séculos e podem ser considerados como um dos produtos mais genuínos do Jornalismo Literário – que é responsável por acrescentar uma contextualização e uma história à determinada informação jornalística.

No Brasil, o jornalismo “de obituário” possui duas versões. A primeira é meramente jornalística e informativa, como pode ser visto na Folha de São Paulo, por exemplo. A segunda versão acontece em forma de tributo ao falecido, geralmente escrita por amigos ou familiares que desejam prestar uma homenagem. Esta última pode ser vista em jornais como o Zero Hora, do Rio Grande do Sul.

Mas, e a Paraíba?

O Estado da Paraíba e a região Nordeste, em geral, nunca haviam dado espaço para os obituários e suas histórias dentro de seus jornais. O gênero sempre foi mais comum nas regiões do Centro-Oeste, Sudeste e do Sul, como destaca o jornalista Jorge Rezende. “Em Minas Gerais (minha terra natal), São Paulo, Goiás, Paraná e afins, jornal que se preze tem que ter obituário, seja nas capitais ou pelos interiores dos estados”, diz ele.

Em 30 anos de carreira jornalística, trabalhando com as mais variadas editorias, Jorge Rezende conta que nunca entendeu muito bem porquê os jornais da região Nordeste não se preocupavam – ou evitavam – o obituário. “Isso precisa ser bem melhor estudado. Pode ser uma coisa histórica, comportamental, cultural… Não sei. Mas sei que sempre senti falta de espaço para os obituários. Ou seja, desde sempre imaginei um espaço necrológico na imprensa paraibana”, afirma.

O obituário está dentro dos gêneros jornalísticos conhecidos por utilitários, pois se tratam de prestações de serviços, geralmente. Jorge vai mais além. “Eu vejo o obituário como um gênero jornalístico, como uma editoria especializada em registros necrológicos, veiculada nos meios de comunicação social”, ressalta o jornalista. “Sempre defendi os necrológicos nas páginas dos jornais impressos de João Pessoa e da Paraíba, pois vejo nessas informações uma das maneiras mais eficazes de se fazer e registrar a história de uma cidade, de um estado, do país e do mundo. O jornal impresso diário é escrever a história com ela acontecendo. E por meio do obituário, você navega pela cultura, costumes, ciência, geografia, curiosidades, pesquisa, religião, filosofia, saúde, prestação de serviço, economia etc. Fazer o obituário é escrever história”, destaca.

Jorge Rezende, editor da seção Memorial do jornal A União.

Foi a partir dessa visão que surgiram os primeiros passos para fazer nascer a Seção Memorial, da qual Jorge Rezende é editor. A Seção, intimamente conhecida nos bastidores como “pé-na-cova”, ocupa atualmente a página 25 do jornal A União –que circula há 126 anos no Estado da Paraíba e hoje integra a Empresa Paraibana de Comunicação.

Até chegar ao jornal A União, Jorge apresentou a ideia em outros grandes jornais paraibanos em que trabalhou, mas em todos não obteve sucesso. Quando questionado se imagina o porquê disso, Jorge é enfático: “medo, preconceito, superstição, desconhecimento… E acredito também em um descrédito comercial. Por acharem que o tema não teria retorno financeiro e fosse um assunto “difícil de vender”.”. E ele ainda reitera que o Memorial, em todo seu tempo de existência, não tem ainda nenhum retorno financeiro para o jornal A União. “Tudo que ali é publicado é impulsionado pelo simples jornalismo, dos acontecimentos”, diz Jorge.

O Memorial estreou no dia 2 de novembro de 2018, Dia de Finados. O nome da Seção foi sugerido pela superintendente da época, a jornalista Bia Fernandes, responsável também por acatar a ideia de Jorge e finalmente fazer o projeto acontecer. “Acredito que encontrei a pessoa certa no lugar certo. Uma pessoa bastante espiritualizada e “antenada” nos comportamentos humanos, que “batia bem” como as minhas ideias e concepções de espírita kardecista como sou”, explica Jorge.

Os bastidores do “pé-na-cova”

Tudo relacionado à morte está sujeito a virar pauta na página. De saúde a comportamentos humanos. Como resume o editor, Jorge Rezende, a vida é a grande pauta do Memorial, afinal a morte faz parte da vida. “Todo mundo fala e escreve sobre o nascimento, da infância, adolescência, das nuances da vida adulta, da velhice, mas não querem falar da morte. O ponto culminante de uma vida é a morte. E o Memorial vem fechar esse ciclo da vida, que deveria ser mais trabalhado, conversado e discutido. A finitude é inevitável para todos. E precisamos nos preparar para ela”, alega ele.

https://www.instagram.com/p/B2mpeHugDsY/

 

Primeira edição do Memorial.

A página se divide em: reportagem, obituário, breves&curtas, história – mortes na data de hoje e o aforismo. Na prática, o obituário é o carro-chefe do Memorial. Os critérios para “entrar na lista” são variados, de pessoas públicas a alguém que por fatos inusitados ou motivos históricos tenha virado notícia. Além disso, a questão geográfica também influencia, sendo a proximidade um critério válido: João Pessoa > Paraíba > Brasil > América-Latina > Mundo.

Ainda dentro da parte do obituário, Jorge sentiu a necessidade de dar visibilidade a luta de combate à violência contra a mulher. Partindo disso, o obituário ganhou um destaque – que faz toda a diferença – intitulado de “feminicídio” para mostrar casos de mulheres anônimas que “pelos nossos critérios, nunca iriam aparecer no obituário [convencionalmente]”, pontua o editor. “Do mesmo modo damos destaques para crimes homofóbicos, com a mesma intenção de combater a violência contra as chamadas minorias”, conclui. O obituário ainda se segmenta em um subtema reservado para animais de destaque, seja por atuação policial ou, por exemplo, ter “atuado” na TV.

Trazendo marcas da História para a seção Memorial, Jorge separa um lugar para retratar as mortes de personalidades que aconteceram na data da edição em questão. “É outro assunto do Memorial e o que dá mais trabalho. É uma construção permanente e diária”, destaca ele. Já o aforismo é um espaço reservado para frases interessantes e/ou filosóficas sobre a temática da morte.

Por fim, as matérias e reportagens que abrem a página Memorial podem ser tanto uma republicação de material já publicado pela imprensa e portais dos mais variados locais, como matérias escritas pelo repórter-editor ou o pessoal que compõe o corpo editorial do jornal A União – repórteres ou estagiários.

Entretanto, o diferencial da Seção não está somente na naturalidade acerca do tema morte ou nas diversas formas de tratar do assunto, mas também na composição estética e visual. Klécio Bezerra é o diagramador responsável por cuidar – além de outras editorias – da página 25 e ele conta que existem algumas diferenças em trabalhar com o “pé-na-cova”. “É uma página bem mais trabalhosa, por causa da diagramação diferenciada, com muitos detalhes, muitas fotos nas seções e o nosso editor que vez ou outra pede um layout diferente para sair da mesmice”, conta ele. Além disso, o diagramador também destaca que é diferente trabalhar com o ‘mote’ do Memorial, com a temática da morte, mas que isso acaba o apresentando histórias surpreendentes.

Diagramação da página.

Epitáfio

A seção Memorial cumpre um papel importante de desmistificar a morte e tratá-la com a naturalidade que o tema pede. A página consegue fazer a temática passear por diversas formas e versões, inclusive como algo cultural. Mais do que isso, ao fazer história na Paraíba, o Memorial e suas quase 200 páginas publicadas até hoje se crava na cultura local sendo a manifestação do gênero jornalístico mais antigo e da parte mais pura do Jornalismo Literário com o obituário, reunindo o que há de melhor nos dois mundos.

Descubra mais sobre a seção Memorial

 

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